domingo, 4 de outubro de 2009

CONHECIMENTO REBELDE E ENQUADRADO - Pedro Demo (parte1)

Novas epistemologias virtuais à luz da história da wikipedia

A wikipedia começou em 2001. Em oito anos de existência, tornou-se uma enciclopédia “livre” de porte incrível (Wikipedia, 2009), congregando a dedicação de milhares de pessoas gratuitamente para editar textos sob a égide da liberdade de expressão. O mote central era: “Todo mundo pode editar”, sinalizando liberdade irrestrita de autoria individual e coletiva – no plano individual, todos podem apresentar seu texto e/ou fazer mudanças nos textos existentes; no plano coletivo, nenhuma autoria individual é soberana, valendo o texto coletivamente urdido e sempre aberto. Havia a expectativa, em geral fundada na proposta de “crowdsourcing” (Howe, 2009) ou de “smart mob”[1] (Rheingold, 2002. Tapscott & Williams, 2007), de que o concurso de uma massa crítica numerosa produziria, em sua própria dinâmica e sem hierarquias, conhecimento de suficiente qualidade (Lih, 2009. O’Neil, 2009). Por trás está uma teoria biológica da “emergência”, segundo a qual a natureza constrói e reconstrói novos seres e dinâmicas a partir de estágios anteriores menos sofisticados, em parte chamados pelos internautas de “remix” (Weinberger, 2007. Latterell, 2006). Assim teria surgido a vida em suas múltiplas formas, bem como da massa cinzenta surge pensamento: “emerge” de uma base material para aparecer como dinâmica imaterial (Edelman & Tononi, 2000). De algo mais simples pode resultar extrema complexidade (Wolfram, 2002), e sem comando central (Johnson, 2001. Holland, 1998. Wright, 2000). Do caos pode provir ordem, como sugere Holland, em processo de criatividade crescente, ainda que a natureza, em si, nada “crie” do nada. Ela cria do que já existe, ou seja, reconstrói indefinidamente. Esta expectativa faz parte da construção da wikipedia, referenciada também como “efeito-piranha” ou “stigmergy”[2], categorias da pesquisa biológica para descrever o comportamento de vespas e cupins, quando constroem coletivamente estruturas complexas; o produto do trabalho prévio, ao invés de comunicação direta entre os construtores, induz e direciona como tais insetos realizam trabalho adicional e sem comando central de cima para baixo. Ocorreria algo similar na wikipedia: cada editor retoma o trabalho anterior e assume aí um direcionamento para continuar, redundando, ao final, num texto aprimorado.

De posse de um software (Wiki) que faculta edição livre de texto e apostando em tais expectativas teóricas, a wikipedia iniciou uma façanha inédita e estrondosa, apresentando por volta de 2008 dez milhões de textos em mais de 200 línguas. Nesse tempo, ocorreu uma fábrica excitada e incomensurável de textos, mostrando o lado fantástico da cooperação humana, a ponto de alguns teóricos verem aí um “novo modo solidário de produção” (Benkler, 2006). Sendo gratuita a contribuição na wikipedia, chama a atenção que tanta gente encontre motivação por vezes devota e desinteressada a este empreendimento coletivo. No entanto, as promessas de liberdade de expressão foram, aos poucos, sendo restringidas, em parte por causa de seus abusos (o preço da liberdade é seu abuso), em parte para organizar melhor o processo produtivo e garantir padrões mínimos de qualidade acadêmica. A rebeldia do conhecimento se submeteu crescentemente a ritos de enquadramento, sugerindo que a wikipedia também expressa ambigüidades comuns a projetos coletivos que se querem libertários: forjados para captar e potencializar a contribuição livre de todos, somente avançam e se consolidam sob crescente regulação da participação, das atividades e das instituições. O exercício coletivo da liberdade implica seu cerceamento, em nome do bem comum. Uma clássica “unidade de contrários”...

Neste texto procuro analisar esta peripécia extraordinária, ressaltando inovações espetaculares e traições comuns em práticas libertárias que convivem, ironicamente, com autoridades indiscutíveis. Depois de oito anos, o mote “todos podem editar livremente” já tem validade muito relativa; para muitos já sequer vale, tamanhas são as regras impostas entrementes a quem quer ser editor. Mesmo assim, isto não destrói a beleza do projeto, embora revele, à revelia, o drama da liberdade de expressão, essencial para o conhecimento questionador: desde que a rebeldia tenha alguma proposta concreta, ao pôr-se a realizá-la, deixa de ser rebelde; de fato, quem propõe mudanças, não as pode gerir! Toda proposta crítica, ao instituir-se, vira paradigma e, como tal, decai para a história que passa e ultrapassa. A wikipedia ainda é um furacão, mas está perdendo fogo, visivelmente.


I. PROMESSAS


A wikipedia conclama a sociedade em geral para produzir conhecimento. Nunca se viu isto antes, porque produzir conhecimento sempre foi atividade reservada, preservada, censurada (Shattuck, 1996. Rescher, 1987), tendo como patrulheiros os especialistas e as entidades que os abrigavam. Relembrando o relato do Gênesis, sobre o “pecado do conhecimento”, a mensagem era similar: quem sabe pensar está acima dos outros e pode até mesmo rebelar-se contra seu criador. Conhecimento seria, em si, uma centelha divina que perdura na mente humana, mesmo depois do pecado. Os “representantes de Deus” foram, no modernismo, substituídos por representantes do conhecimento, tendo como pastores maiores os doutores e como igreja central a universidade (Collins, 1998. Demo, 2004. Andrew, 2009). Conhecimento é energia tão fundamental e disruptiva que a sociedade se preocupa também em domesticá-la, já que se teme a quem sabe pensar, porque saber pensar não é só questão de inteligência, é também de poder. Não se teme a um pobre com fome, que facilmente se acomoda ao receber comida. Teme-se a um pobre que sabe pensar, porque questiona o sistema que o faz pobre. Este “contra-poder” aparece na história humana em iniciativas de excluídos que conseguem confrontar-se com seus opressores (Freire, 2006), passo indispensável para não esperar a libertação do próprio opressor (Demo, 2007). A emancipação exige a habilidade de se confrontar, no sentido de saber questionar a condição dada, tomar o destino em suas mãos e virar a história: a energia vital desta virada é saber pensar (Demo, 2009). Faz parte do saber pensar fazê-lo em liberdade: a mente livre é sua casa. Por isso, “liberdade acadêmica” sempre foi fundamento intocável da educação e da universidade e dos “intelectuais” em geral. Nisto igualmente são temidos, porque daí provém o questionamento do status quo, ainda que este questionamento possa ser apenas “intelectual” (Demo,1982; 1988). A mente humana tem, entre suas capacidades, a de nunca estar satisfeita, porque saber pensar implica igualmente saber ir além do que está dado e especular, imaginar, fantasiar o que poderia ser (utopia) (Demo, 1973). Daí provêm as tecnologias, signo maior de um ser que não se basta. Como reza a Bíblia, quer ser deus, como aparece freqüentemente na ficção científica: a capacidade de manipular o mundo e suas leis para se poder fazer o que bem se entende.

Esta rebeldia, entretanto, tem seu lado sombrio. Primeiro, como se alega em sociologia, o revolucionário de hoje será o reacionário de amanhã, desde que chegue ao poder. Já cansamos de ver isso na história (Holloway, 2003). Quem sabe pensar, nem sempre gosta que outros também saibam pensar. Segundo, questionar dificilmente vem acompanhado de autoquestionar-se. A hipocrisia corrói as entranhas do saber pensar, tornando-o autodefesa e artimanha. Bastaria observar os procedimentos de antigos escribas e pajés, e do abuso do saber especializado hoje. O sistema educacional, em grande parte, abriga a artimanha do domínio das mentes (Demo, 2004), através de procedimentos disciplinares, acerbamente criticados por Foucault (2007). Por ser auto-referente e não permitir acesso externo direto, a mente humana facilmente se apresenta como habilidade dúbia: o que está na mente do outro se pode, no máximo, induzir, não saber. Ao mesmo tempo que podemos produzir conhecimento de qualidade e também compartilhá-lo com os outros, podemos, não menos, nos apropriar desta produção, ou deturpá-la, manipulá-la em proveito próprio. Segundas intenções freqüentemente são as primeiras. A mente humana não é equipamento que procede de maneira neutra, objetiva, porque não se porta como expectadora, recipiente, absorvedora, mas como dinamicamente participativa daquilo que entra na mente. Entender a realidade não é fazer dela cópia, representação direta, mas reconstruir imagem sob risco próprio. Como sugere a autopoiese, torna-se quase impossível distinguir entre realidade e alucinação (Maturana, 2001), pois o critério de distinção poderia estar alucinado. Do que está na mente a única instância é a própria mente, ainda que, vivendo em sociedade, surge sempre a possibilidade natural de coordenação das mentes, resultando disso percepções socializadas do que é realidade. Na prática, não vemos as coisas como são, mas como somos (Demo, 2009).

A mente é dinâmica manipuladora da realidade, ao trabalhar com percepções construídas de maneira auto-referente. No entanto, esta manipulação possui igualmente seu lado não acessível à própria mente, já que esta, no processo evolucionário e cultural, não se inventa. Não inventamos, por exemplo, a linguagem, a recebemos no contexto de uma cultura dada e da qual somos parte e usuários, em parte “usados”. A mente não inventa o que quer, mas o que é viável evolucionária e culturalmente. Isto não desfaz sua capacidade criativa, mas a circunstancia em dinâmicas relativas, como aludia Barthes com a tese da “morte do autor” (1968). A visão socrática do conhecimento pode ser corretivo pertinente: quem saber pensar, sabe sobretudo que não sabe tudo; precisa, antes de tudo, questionar o saber pensar. Isto não resolve a questão, como se a mente pudesse “saber-se” por inteiro, mas permite avançar com cautela e coordenar-se melhor com outros modos de saber pensar. A face mais interessante deste imbróglio é a “arte de interpretar” (Foucault, 2004. Gadamer, 1997), reverberando o lado sempre original da mente: embora nenhuma seja evolucionária e culturalmente original, o é em sua individualidade e subjetividade, não havendo, jamais, duas interpretações iguais, mesmo quando se trata do mesmo sujeito. Por exemplo, se perdemos um texto digitado no computador e temos, depois, que refazê-lo, não há a menor chance de que possamos repor o mesmo texto. Será outro texto, por mais similar que seja. A mente humana é de tal modo plástica, jeitosa, criativa que produz música, poesia, piada, arte, e também ciência e matemática.

A evolução da wikipedia ilustra, com cores muito vivas, uma proposta de produção de conhecimento mais visivelmente conturbada e criativa, em parte retomando um desiderato antigo da enciclopédia (reunir todo o conhecimento humano disponível), em parte refundando a epistemologia, tornada a agora de acesso generalizado.



II. UTOPIAS E UTOPISMOS



Dispensando teorizações mais complexas, entendo por utopia a criação constante na história humana de mundos alternativos que, embora irrealizáveis (são idealizações), fazem parte da realidade em sentido negativo: são fonte permanente do questionamento do que aí está. Por exemplo, aquela cidadania perfeita, na qual todos se organizam e participam, e controlam eximiamente os mandantes, não existe na prática, mas dela retiramos a força para continuar lutando por cidadanias mais qualitativas. Entendo por utopismo a pretensão descabida, em geral ditatorial, de implantar utopias na prática, como, por exemplo, tratar a todos de modo perfeitamente igual. O resultado ditatorial é que, desconhecendo as diferenças, trata-se de modo igual gente diferente, redundando em injustiças ainda maiores. Faz parte do utopismo também considerar situações históricas como ideais, obscurecendo sua relatividade e incompletude, servindo como exemplo recorrente a expectativa vastamente proclamada nos Estados Unidos de melhor democracia do mundo (Friedman, 2005).

A wikipedia guarda uma utopia notável, maravilhosa, sensacional e que galvaniza milhões de contribuintes, mas vira utopismo, quando se apresenta como modelo cabal de enciclopédia ou ignora suas ambigüidades na construção e institucionalização do projeto. Longe de uma comunidade apenas orientada pela cooperação de boa fé, ela oferece o espetáculo dantesco de vandalismo insistente e de disputas dramáticas por poder, mostrando que rivalidades a constituem também. O abate da autoridade é slogan retórico e serve para encobrir entendimento conveniente (farsante) do exercício do poder. Se Foucault estivesse vivo, iria divertir-se às gargalhadas com tais ambigüidades, por mais que se possa criticá-lo de obsessão demasiada pelo tema e principalmente pela pretensão de monopólio do espírito crítico (O’Neil, 2009:72-73. Spariosu, 2005; 2006). De certo modo, o fez Bourdieu (1999), com percepção aguçada da dominação em sociedade e suas artimanhas. De fato, ainda que não seja o caso transformar poder em obsessão analítica, como ocorreria em sociologia (Demo, 1973; 1988), não se escapa de reconhecer que é tema sufocante. Se não gostamos do tom de certa “defesa” da autoridade legítima em Weber (1978), porque nos atrai o canto da sereia da comunidade sem autoridade, uma percepção (mais) realista do processo de socialização sugere que poder faz parte da “estrutura” social das sociedades conhecidas. Na “dialética histórico-estrutural” (Demo, 1995), tento compor esta ambigüidade angustiante para a análise sociológica: de um lado, sociedade é dinâmica histórica, tanto por ser parte da natureza sempre em vir-a-ser, como por ser parte de fenômenos históricos, todos marcados pela passagem, provisoriedade, incompletude. Isto permite asseverar que poder é sempre dinâmica natural e histórica: periclitante, temerosa e temerária, sujeita a mudanças constantes, nunca completa e definitiva. Todos os poderosos passam, mesmo que durem muito, também expressões multimilenares como o patriarcalismo. De outro lado, poder é parte da estrutura da sociedade, um dos componentes recorrentes de suas dinâmicas, um dos pilares em torno dos quais as dinâmicas se fazem e desfazem.

Teorias do caos estruturado (Demo, 2002) sugerem que mesmo uma dinâmica caótica revela alguma estrutura: toda dinâmica apresenta recorrências e que são mais bem estudadas pela ciência que, por conta do método, aprecia o que é invariante nas dinâmicas; acaba estudando o que não é dinâmico nas dinâmicas (Massumi, 2002). Na natureza e na história há modos de ser e modos de vir-a-ser, o que permite teorizar sobre regularidades ou recorrências, ainda que este ordenamento, como diz sarcasticamente Foucault (2000), seja produto mental. Esta percepção permite engolir que poder é uma das estruturas sociais com as quais sempre nos deparamos, sendo mais ajuizado partir dele do que prometer sua extinção, até porque analistas ou revolucionários que assim procedem (querem acabar com o poder) sempre morrem antes. Este reconhecimento é arriscado, porque facilmente pode desandar em promoção do poder, tomando-o como imutável, intocável. É preciso, então, segurar nas mãos duas rédeas dialéticas – histórica e estrutural – para podermos cavalgar uma dinâmica complexa não linear de maneira mais aproximadamente realista.

Os wikipedianos facilmente se enrolam em discursos utopistas e salvacionistas, conduzidos por pretensões utópicas em si interessantes. É fenômeno de rara beleza a interatividade na internet, na qual todas as relações e clivagens parecem “aplanar-se” (Friedman, 2004), e que proporcionou chance incrível de construção de conhecimento a infinitas mãos. A participação de todos (desde que tenham computador e internet!) representa a “riqueza das redes” (Benkler, 2006) e um estilo de sociedade “informacional” (Castells, 1997) que pode abrir grandes avenidas para processos participativos legítimos e produtivos. A isto acresce a devoção da geração net, marcantemente embasbacada com o mundo virtual e que lhe faz parte cada vez mais, sem volta (Tapscott, 2009. Winograd & Hais, 2008), introduzindo em suas vidas estilos alternativos de cooperação em grande dimensão. A questão é não perder de vista a montanha de problemas que também arranjamos, seja porque a internet é igualmente um “lixão”, seja porque é bem possível estar só na multidão virtual, seja porque, entre interações positivas, há outras destrutivas, balançando entre “tecnofilias” e “tecnofobias” (Demo, 2009a). Como o mundo virtual é tramado por dinâmicas ambíguas e dialéticas, não cabe só apreciar ou só detestar, mas tomar como unidade de contrários. A wikipedia declama, naturalmente, suas virtudes, em nome de suas utopias, mas tende a ignorar impasses, contradições, tumultos, para fazer boa figura, por vezes em flagrante hipocrisia. Poder abriga tendências hipócritas incontidas, porque precisa aparentar – para os incautos – que só quer seu bem. Seus líderes carismáticos, ironicamente chamados de “ditadores benevolentes”, facilmente extrapolam todas as expectativas democráticas e comunitárias ao permanecerem no poder de maneira mais ou menos vitalícia e incontestada, provocando em seus liderados relações histéricas. Este fenômeno facilmente recorrente já seria suficiente para indicar o quanto a prática está distante da teoria, já que se trata de comunidades por vezes muito produtivas, empenhadas e comprometidas numa obra comum, mas manietadas a alinhamentos inacreditavelmente rígidos[3].

Quando se ignora o poder, faz-se apenas o que os poderosos querem. A natureza, no entanto, insinuaria que seria viável imaginar um estilo de autoridade libertadora, à la Paulo Freire (1997) e que faria parte da “pedagogia”: todo professor é autoridade, mesmo que não queira assim ser visto; todavia, a pode exercer de modo que fomente a formação da autonomia de seus alunos. A sociologia da educação é propensa a ridicularizar esta expectativa (Demo, 2004. Bourdieu & Passeron, 1975), em uníssono com Foucault (2007), porque tende a ressaltar seu lado socializador, domesticador. No entanto, o que a sociologia empurra para um canto (reprodução), a natureza parece realocar em certo meio termo: todo ser vivo nasce em ambiente de dependência aguda, fatal, de seus procriadores, mas, convivendo com eles e com a realidade circundante, constroem oportunidades de autonomia e que eclodem, com o tempo, na urgência de vida própria. Assim, estaria inscrita na mente do ser vivo esta ambigüidade dialética: precisamos de autoridade que fomente a autonomia e precisamos de autonomia que se compatibilize com autoridade. Toda situação de dependência clama por autonomia; toda situação de autonomia implica dependência. Ocorre que, por laivo sociológico, tendemos a estigmatizar o lado perverso da autoridade, também para reagir à visão weberiana entendida por muitos como um preito à autoridade (Demo, 1973). Dialeticamente falando, poder é dinâmica dialética, ambígua, contraditória, na qual há dois lados sempre, mesmo que um deles experimente condição de submissão profunda. O lado de baixo não é descartável, secundário, mas integrante da unidade de contrários. Tanto é assim que é possível, dependendo das circunstâncias e do saber pensar dos dominados, mudar a situação: é sempre cabível o poderoso perder o poder. Esta abertura intrínseca de dinâmicas dialéticas, no entanto, precisa ser balanceada com a possibilidade não menos comum de o novo poderoso ser ainda mais virulento que o anterior. Toda crítica do poder postula poder!

Esta condição parece clamorosamente típica da wikipedia. Seus discursos libertários do software livre, da produção cooperativa, da interação desimpedida, do abate da autoridade acabam produzindo uma cortina de fumaça para encobrir o quanto contribui para justificar o mercado liberal, a reconstrução de alinhamentos autoritários internos, a solidificação de burocracias renitentes, a ideologia da liberdade cerceada. É impressionante como a wikipedia em apenas oito anos de existência passou de uma comunidade onde todos podem editar sem peias, a outra repleta de regras e hierarquias, caminhando – assim parece – rumo a textos cada vez mais protegidos, talvez já finais, ou seja, não mais abertos à edição por todos. A metáfora do “ditador benevolente”, ainda que honrada por exemplos edificantes (Wales, em especial), torna-se sarcasmo gritante face às confusões crescentes e tumultuadas no interior dessas comunidades que, a par da obra comum, luta-se por ocupação de espaços, por vezes desonestamente. Interessa-me aqui comentar a utopia do texto sempre aberto, uma das mais atraentes e brilhantes da wikipedia.

Considero esta visão uma das mais fascinantes da wikipedia, pois apanha em cheio a dinâmica disruptiva do conhecimento, que não é pacote, mera informação, coisa armazenada, mas gesto incessante de desconstrução e reconstrução. Apanha igualmente a energia infindável e profunda, suave e forte, da autoridade do argumento que, ao apresentar-se, constitui uma “força sem força”. É o tipo da autoridade não autoritária, porque sua autoridade é de mérito do argumento mais bem fundamentado, tão bem fundamentado que pode sempre ser reconstruído. Inicialmente pelo menos, a wikipedia tinha esta visão de seus textos: em progresso infindável, sem formato final, aberto à reconstrução de todos sem peias. Este estilo de “fundamento sem fundo” (Demo, 2008) elabora uma expectativa dialética da produção de conhecimento que contrasta ostensivamente com outras inseridas na wikipedia de teor modernista e positivista, tal qual a noção de enciclopédia como guarda do conhecimento disponível, ou de neutralidade de sua produção pelos contribuintes, ou de verificabilidade dos conteúdos dos textos. A noção de conhecimento como dinâmica desconstrutiva/reconstrutiva é traída aí em nome de um estilo estabilizado, congelado e definitivo que já se poderia “preservar”. Enquanto na promessa dialética “todos podem editar livremente” se promovem textos sempre abertos e que encontram nesta abertura uma de suas qualidades mais marcantes, nos procedimentos metodológicos esta dinâmica acaba aprisionada por estruturações reativas. Uma coisa é entender enciclopédia como repositório do que já se fez – por isso, não cabe pesquisa original, mas compilar o que está disponível –, outra coisa é entender como referência de incessante reconstrução do conhecimento, na qual o repositório disponível é infinitamente recriado. Esta talvez tenha sido a maior novidade e invenção. Mesmo que não caiba pesquisa original, por alguma razão que não alcanço perceber, todos os textos são expressão viva de processos interpretativos, re-interpretativos, contra-interpretativos, tal qual o “remix” da internet (Weinberger, 2007. Latterell, 2006). A wikipedia seria uma fábrica em funcionamento 24 horas por dia, 365 dias por ano, não um mausoléu. Quando menos, isto desvela outra marca brilhante: os textos seriam atualizados naturalmente na própria dinâmica de sua reconstrução sem fim.

Mas há outra maravilha: se todos os textos estão sempre abertos à reconstrução de todos, o texto que mais chance teria de merecer a atenção seria aquele mais bem argumentado, sem que daí decorresse qualquer formatação definitiva. Seria apenas menos provisório, porque deteria melhor fundamentação. Considero esta face uma propriedade pedagógica inestimável, porque, como diria Habermas, na esfera pública democrática e eticamente estruturada, vale a “força sem força do melhor argumento” (1989). Como não cabe o argumento de autoridade, nem qualquer imposição autoritária, ser ouvido só poderia ser questão de mérito de quem se faz ouvir, não gritando, vociferando, agredindo, ofendendo, mas argumentando. O texto que desfila pela passarela com maior consistência e permanência seria, naturalmente, aquele que merecesse este respeito da comunidade. Este tipo de texto particularmente qualitativo não reivindica nenhuma permanência estável, muito menos definitiva, mas a comunidade o muda dentro do mesmo contexto de profundidade e acuidade, porque a uma obra prima cabe reconstrução como obra prima também. Assim ocorre com teorias importantes: todas são incompletas, datadas e localizadas, mas algumas sobrevivem aos tempos, merecendo a atenção por conta de sua qualidade. São reconstruídas também, porque isto é do negócio, mas suas reconstruções precisam deter qualidade similar. Textos irrelevantes atraem mudanças irrelevantes, ou permanecem estáveis porque não merecem atenção.

Com o tempo, porém, a wikipedia foi cansando de tanta reconstrução de textos, levada igualmente pelos azares do vandalismo, ao lado do concurso de amadores com pouca qualificação. A tentação do texto definitivo retorna com força, em parte porque alguns textos podem ser tão bem feitos que poderiam permanecer assim por algum tempo, mas em parte por subordinação positivista a um estilo de produção que foge de ser discutida. À medida que a wikipedia se aproxima do formato tradicional, inclina-se a repetir o mesmo modelo de conhecimento, perdendo sua dinâmica disruptiva. Chocam-se aí dois mundos acadêmicos: um mais moderno, movido pela expectativa do conhecimento formalista e estável, capaz de dar conta da realidade assim como ela é; outro pós-moderno, impulsionado pela dinâmica complexa não linear de elaborações sempre abertas, cuja validade é relativa, datada e localizada, mas em permanente reconstrução. A energia disruptiva da wikipedia parece estar se cansando...

Não estou aqui procurando uma “solução” (unidade de contrários não é solúvel), mas uma acomodação dialética, possivelmente mais realista. De um lado, há que se respeitar a proposta utópica de crítica cerrada ao poder, mesmo do poder legítimo. Como sugere Boehm (1999) em sua análise de povos “primitivos” (da época nômade), “falar mal dos poderosos” é obrigação cívica, para evitar que o poder lhes suba à cabeça. O próprio poder legítimo, sem crítica cerrada debaixo para cima, tende a amealhar privilégios, porque a tentação é quase irresistível. De outro, estão dinâmicas de poder que, além de componentes naturais e legítimos, poderiam ser vistas como “pedagógicas”, porque envolvidas no processo de formação da autonomia. Poderíamos ver isso, com devida cautela, na liderança de Wales na wikipedia: embora a noção de “ditador benevolente” já seja suficientemente sarcástica, sua presença possui faces muito positivas, responsáveis em parte pelo êxito da empreitada. Ainda assim, não posso deixar de reconhecer que “defender poder” é quase sempre um suicídio.

Continua na parte 2
Inté mais

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