segunda-feira, 5 de outubro de 2009

CONHECIMENTO REBELDE E ENQUADRADO - Pedro Demo (parte 2)

Leia antes a parte 01 (cliquem aqui)

Novas epistemologias virtuais à luz da história da wikipedia

III. NEUTRALIDADE MAIS QUE ENGAJADA


A wikipedia é uma enciclopédia, e, como é da tradição enciclopédica, significa esforço de “compilação” do que existe. Tomado isto ao pé da letra, segue que seu conteúdo é típico “remix”, ou, reinterpretação das interpretações, discurso de discursos. Não caberia pesquisa original, a não ser se fosse já algo compilado. Sendo livre a edição, pelo menos em certo sentido, as compilações admitem, naturalmente, níveis muito diferenciados de qualidade, predominando facilmente as mais banais ou em torno de temas banais. Dificilmente Sócrates receberia maior atenção do que Sílvio Santos. É problema na wikipedia, certamente. No entanto, pode-se discutir o que seria propriamente “compilar”, aparecendo dois extremos: textos banais e sofisticados. Mesmo fazendo uma compilação da biografia de Sílvio Santos, pode ser conduzida com grande acuidade, senso crítico, elaboração meticulosa, demonstrando autoria visível. Por outra, pode-se fazer uma compilação medíocre de Sócrates. Em países avançados, esta questão é posta para os jornalistas com particular ênfase. Entre nós, um jornalista facilmente aborda qualquer assunto, porque tem formação qualquer. O resultado disso são entrevistas inomináveis, nas quais as perguntas, em vez de propor análises pertinentes do entrevistado, apenas revelam a futilidade do entrevistador. Quanto mais o assunto é complexo, no entanto, tanto mais surge o desafio de “especialização” do jornalista, como é o caso notável dos jornalistas “científicos” (que trabalham ciências naturais, por exemplo), exigindo-se deles altas credenciais acadêmicas, como doutorado nessas áreas. Supõe-se que, para falar de ciência, é imprescindível conhecimento especializado, mesmo tratando-se de compilação para a enciclopédia. É o que fazem as enciclopédias tradicionais, nas quais trabalham, como regra, apenas especialistas.

Por trás desta questão está uma discussão infernal em torno da “especialização” (expertise), em geral não apreciada pelos wikipedianos que fazem edições sem preocupar-se com isso. Há autores que não vêem problema nisso, porque apostam na “crowdsourcing”, confiantes no fenômeno da emergência ou no efeito-piranha. Aposta-se no processo natural de evolução que elabora níveis ulteriores/superiores, como o surgimento da vida. Surgem chances de criatividade, não do nada, mas da reconstrução dos componentes dados. A inteligência seria resultado deste processo emergente, por alguns visto também no universo como computador (Gardner, 2007. Wolfram, 2002), do que seguiria, igualmente, que o computador, um dia, também viria a tornar-se inteligente (Kurzweil, 2005). Alguns analisam a evolução natural como marcada intrinsecamente pela produção emergente da vida e da inteligência (Wright, 200. Jensen, 1998. Morowitz, 2002). Sem avançar mais nisso, interessa-me apenas delinear este tipo de expectativa que se tornou notório com o texto de Rheingold (2002) sobre “smart mobs” (multidões espertas), sugerindo que pessoas simples podem produzir textos inteligentes, desde que isto ocorra no contexto emergente da colaboração de todos.

A academia mantém suas suspeitas, porque a tradição modernista da produção científica a prende ao especialista credenciado (doutorado ou coisa que o valha), de estilo disciplinar. O questionamento da disciplinaridade da ciência (Demo, 2000) indica tratar-se de procedimento excessivamente reducionista, se tomarmos em conta que a realidade nunca é disciplinar. Seu tratamento dito científico o é, por apegar-se ao método analítico, que imagina entender a realidade recortando-a em partes subseqüentes, até a um nível último, onde se abraçam ontologia e epistemologia (a realidade no fundo seria simples e sua explicação também). Não se trata de rejeitar o reducionismo por completo, já que se aceita ser toda teoria naturalmente reducionista, porque idealiza a realidade em um modelo simplificado (Haack, 2003. Giere, 1999. Demo, 2000b). Rechaça-se o reducionismo sem autocrítica, por pretender fazer coincidir o discurso científico com a realidade analisada sem mais. Levando-se ainda em conta a querela em torno da interdisciplinaridade, em geral pouco produtiva, além de banal (Demo, 2000), restou a impressão de que dispensar a especialização implica a banalização do conhecimento: conhecimento aprofundado é sempre especializado. Enquanto se repele a disciplinarização do conhecimento, parece difícil escapar da especialização, por mais que esta tenda a constituir o “idiota especializado” (sabe tudo de nada). No outro lado, está o “especialista em generalidades” (sabe nada de tudo) e que, bem observado, não passa também de um “especialista”, como se vê claramente no “médico generalista” – não é aquele que, não sabendo medicina, faz qualquer coisa; muito ao contrário. Ademais, se aceita, modestamente, que a interdisciplinaridade não pode ser obra de uma pessoa, mas de um grupo de especialistas (trabalho em equipe). Ao formar-se uma equipe interdisciplinar, nota-se imediatamente que a expectativa de cada membro é de que o outro tenha conhecimento especializado, não fazendo sentido cada um penetrar – como generalista – na seara do outro.

Não se podendo evitar a especialização (os problemas a serem analisados possuem marcas especiais, não apenas gerais), seria razoável concertar as coisas: sem prejudicar a verticalização do conhecimento, ampliar a horizontalização (mais leitura, discussão conjunta, diversificação de interesses). Como mostra Santos, com suas teses da multiculturalidade do conhecimento, da ciência como senso comum e das epistemologias alternativas (1995; 2004; 2009; Santos & Meneses, 2009), o conhecimento científico é um exemplar no mundo vasto dos conhecimentos possíveis, ainda que seja amplamente dominante na cultura eurocêntrica. Seria, então, viável desenvolver a noção de conhecimentos rivais, não fincados apenas em expertise, mas produzidos colaborativamente, como pretende a wikipedia. Este tipo de conhecimento não substitui o especializado; não faria sentido tentar, pois tem outro significado, mais próximo do que seria, por exemplo, uma “compilação”. Numa enciclopédia não “está” o conhecimento da humanidade, pois conhecimento “não está”, sendo dinâmica interminável de desconstrução/reconstrução. Está aí apenas a compilação dos processos estabilizados de produção de conhecimento, no fundo, já congelados como informação. Poder-se-ia, entretanto, alimentar outra concepção de enciclopédia como dinâmica aberta de produção de conhecimento e que subsiste em discussão permanente, através de processos de edição interminável, sem estabilização à vista. O que mais se aproxima disso é a wikipedia, ainda que sua configuração metodológica se oriente por outra visão (modernista). Restaria discutir ainda se “todos podem editar”, já que, se pesquisa original fosse aceita (deveria ser aceita, creio), a presença do pesquisador devidamente formado seria imprescindível, também para não surgir logo confrontos pouco edificantes entre pesquisadores “duros”, mais rigorosos, formalistas, matemáticos, e outros “moles”, das ciências humanas (Spariosu, 2006). O que “todos podem editar” seriam textos experimentais, iniciais, de pesquisadores menos preocupados com metodologia científica, do que com seu processo caótico de criatividade. De repente, isto ficaria muito bem numa wikipedia.

De fato, um dos traços mais atraentes da wikipedia é a desconstrução da academia como dona da verdade e do método científico. No surgimento da era moderna (por volta do século XVI) (Burke, 2003. Collins, 1998), a descoberta mais incisiva foi a da “autoridade do argumento” – o discurso científico se mantém, não pendurado em autoridades (por exemplo, religiosas, tradicionais, políticas), mas por força de sua argumentação. Um dos confrontos marcantes foi entre os cientistas da época que defendiam o heliocentrismo, e as “autoridades” que, por razões teológicas sobretudo, defendiam o geocentrismo. O confronto resolveu-se em favor do heliocentrismo, mesmo a contragosto do Papa. O argumenta de autoridade estaria descartado, definitivamente (Demo, 2005; 2008). Todavia, como ciência é produzida em sociedade, não escapa das marcas sociais, como mostrou magistralmente Kuhn (1975), ao reconhecer que toda revolução científica acaba se acomodando em paradigmas que a tornam cada vez mais medíocre, por tornar-se reprodutiva. Retorna o argumento de autoridade, porque o mundo da ciência é composto de cientistas que manifestam os mesmos traços de volúpia pelo poder, sem falar que conhecimento é, intrinsecamente, poder (Portocarrero, 1994). Os processos de produção de conhecimento, mesmo marcados pela liberdade de expressão naturalmente, estão eivados de interferências suspeitas de donos da verdade, até porque aí se acredita, à revelia da autoridade do argumento, em verdades finais e estáveis, uma fantasia criada pelo método científico, pretensamente neutro/objetivo. Verdades “teológicas” foram substituídas por outras não menos teológicas (Feyerabend, 1977).

Ignora-se não apenas o contexto social da produção científica, mas principalmente o contexto hermenêutico das epistemologias plurais (Demo, 2009b): a par dos procedimentos formais (em si neutros/objetivos, porque não há uma matemática ou lógica brasileira e outra chinesa), a mente humana, sendo autopoiética e auto-referente, não reproduz textos, mas os reconstrói do ponto de vista do observador participante (Demo, 2002). A matemática usada por Einstein é a mesma de todos; ele próprio não é. Sem ele, talvez não tivéssemos até hoje o teorema da relatividade, pois este teorema, a par de sua forma, é igualmente uma reconstrução genial. Gödel, de certo modo, sinalizou isso com seu teorema da incompletude (Alesso & Smith, 2009), mas na academia modernista, positivista, persiste o discurso como produto neutro/objetivo (Demo, 1995). A wikipedia não pretende desconstruir rigores formais ou formalização como método. Satiriza a pretensão inatacável dos cientistas, em especial a venda fácil do argumento de autoridade como autoridade do argumento. Esta venda se consubstancia no apego à verdade dos fatos, esquecendo-se, como diria Popper entre outros, que mesmo fatos só são fatos a partir de um processo de reconstrução mental e à luz de hipóteses rivais/complementares. Por isso Hobsbawm (1995) fala de “breve século XX”, enquanto Arrighi (1996), de “longo século XX”! Certamente, o ambiente dos historiadores é bem diferente daquele das ciências naturais, mas também nestas as abordagens são conduzidas por aproximações hipotéticas eivadas de interpretação auto-referente. É por isso que a “teoria da evolução” (de Darwin) é tida por alguns como “comprovada” (escola de Dawkins) (1998), por outras como hipótese importante e a ser reconstruída (escola de Gould) (2002), e por outros ainda como improvável ou inaceitável (criacionistas).

Satirizar a academia não significa desprezar o que se tem feito, em especial as contribuições da tecnologia, entre elas do computador, engenharia genética, física quântica. Quer-se apenas desfazer a empáfia dos donos da verdade que, vendendo-se como arautos da autoridade do argumento, maquinam o argumento de autoridade. Em termos epistemológicos, a autoridade do argumento só pode deter validade relativa, precisamente para não virar autoridade. Qualquer produto científico que não seja apenas formal detém esta marca natural e social. No mundo da ciência há infinitas gradações, desde as mais rebuscadas, até as mais triviais, assim como numa enciclopédia podem-se achar compilações primorosas e fúteis. Desprezando extremos, seria sempre cabível admitir formatos diferenciados de enciclopédias, desde as mais requintadas, feitas por especialistas consumados, até outras mais populares, feitas por “todos que querem editar”. Neste caso, as edições serão menos “especializadas”, mas não precisam, por isso, serem fúteis, como a wikipedia, como um todo, está longe de ser fútil. Bastaria lembrar do estudo da Nature (Nature, N.d). A sátira cabe ainda mais a pretensos cientistas que se apresentam como tais, não sendo na prática autores importantes e competentes, como são os casos incontáveis de acadêmicos que, sem produção própria, dão aula a torto e a direito. A nova geração está cansada deste disparate, embora possa responder a um extremo com outro (Tapscott, 2009. A vision, 2009), desprezando apressadamente a expertise.

A hipótese de que uma multidão de amadores poderia produzir alta qualidade ainda é obscura (Keen, 2007. Bauerlein, 2008), também porque a hipótese da emergência se aplicaria a processos evolucionários de bilhões de anos. Neste sentido, a crítica pode ser procedente: na wikipedia há bem mais animação comunitária do que qualidade acadêmica. É lindo galvanizar tanta gente, mas isto não garante qualidade, muito menos substitui a expertise. O que a wikipedia sugere é que, “todos podendo editar” (hoje isto tem validade bastante mais relativa), é possível oferecer produtos respeitáveis, também porque no meio de “todos” há os especialistas e que tendem a assumir os textos mais complexos. “Todos” podem compilar uma biografia de Silvio Santos, mas não sobre física quântica. Tomando-se uma dimensão mais popular da enciclopédia e que admitiria estilos mais flexíveis de compilação, a wikipedia tem-se demonstrado útil, produtiva e convincente, além de atualizada. Proibir seu uso para fins de estudo e pesquisa parece fundamentalismo tolo. O que cabe dizer sempre é que a wikipedia não substitui outros formatos de enciclopédia.

IV. REBELDIA REGULADA

As três regras metodológicas podem, a esta altura, ser questionadas mais detidamente. NPOV (ponto de vista neutro) representa um preito ostensivo ao positivismo, em si compreensível nos Estados Unidos, a pátria maior da wikipedia. Ainda que se conceda que não poderia existir neutralidade, usa-se este jargão para empurrar as discussões para algum consenso, em nome de alguma verdade, nunca definida mais de perto. Na prática, a proposta se deve ao temor da discórdia, esperando-se que, tendo boa vontade, todos iriam se encontrar em algum lugar tranqüilo. A contradição é flagrante e claramente sarcástica: de um lado, se todos podem editar, isto representaria naturalmente a diversidade de pontos de vista; de outro, espera-se que tudo isso se acalme num texto final de um único ponto de vista; no entanto, se todos podem editar sempre, não haveria texto final, mas em progresso incessante; nem se poderia imaginar que os textos, oriundos de incontáveis pontos vista, acabassem como peças sem ponto de vista. Colidem aí dois desideratos irreconciliáveis: saber discutir e saber alinhar-se. Ora, quem sabe discutir, não se alinha; quem se alinha, não sabe discutir. A wikipedia é a cara disso, quer queira ou não. Diria, de meu ponto de vista, que é das marcas mais saudáveis dela, partindo de outra visão. Se a ciência produz textos sempre discutíveis, formal e politicamente, eles podem deter grande qualidade de elaboração, precisamente porque permanecem abertos a elaborações ulteriores, não porque se chegaria a algum patamar “neutro”. O critério maior de cientificidade é a “discutibilidade” dos textos em nome da autoridade do argumento. O exercício do aprimoramento das edições, desde que feito sob a égide da autoridade do argumento, é dinâmica de rara beleza pedagógica, porque não só promove a habilidade de produzir conhecimento, como promove, ainda mais, um estilo de cidadania capaz de negociar consensos aprimorados, ainda que nunca finais (Demo, 2008). NPOV aparece na cena como excrescência, um alinhamento a metodologias positivistas e que em nada funciona neste tipo de ambiente. É farsa cômoda.

Quanto à verificabilidade – V – a crítica é similar: os textos científicos não são propriamente verificáveis ao pé da letra, porque esta presunção supõe correspondência direta entre teoria e realidade, algo impraticável em nossa mente auto-referente e autopoiética. Podem, sim, ser retestados, controlados, cotejados, mormente reinterpretados, contra-interpretados. Tal percepção da verificabilidade esconde, ademais, a mediocridade gritante da compilação alinhada a fontes muitas vezes impróprias. O alinhamento a fontes facilmente atropela a pesquisa mais detida que questiona as fontes. Esta tática tem seu lado tranqüilizador: impedir que as edições se façam à-toa. No entanto, pode-se imaginar coisa bem melhor, quando se mantêm os textos discutíveis por força da autoridade do argumento: até mesmo texto sem cotejo de fontes poderia ser aceito, desde que bem argumentado; alguém poderia elaborar uma bibliografia de Silvio Santos de próprio punho e que, sendo melhor que todas as existentes, não ganharia nada em referenciá-las. Poderia parecer estranha esta biografia sem citação – pode-se, claro, sempre citar, desde que não vire fetiche – mas sua qualidade depende, antes de tudo, da pesquisa acurada e espelhada em dados testáveis, além do esmero do texto elaborado. A referência fundamental aí seria a fontes adequadas, compulsadas para levantar a vida de Silvio Santos.

NOR (sem pesquisa original), por sua vez, ainda que sirva para evitar “invencionices” de toda sorte, tende a ser restritiva desnecessariamente. Há certa desconfiança de que, podendo todos editar, as contribuições podem não ser brilhantes, em especial quando se alega pesquisa própria. Espera-se disso, porém, justa e contraditoriamente o brilhantismo da wikipedia. Ainda, ao castigar a “originalidade”, machuca-se a autoria, exasperando o lado medíocre da compilação. Daí segue uma enciclopédia eivada de textos dúbios, ao lado de outros muito bons, como é a wikipedia (Lih, 2009). Ficaria melhor abrir a possibilidade de textos “originais”, desde que dinamizados pela autoridade do argumento. Ademais, persistindo a repulsa aos expertos, corre-se o risco flagrante de fazer dos textos exercícios amadores, ou “discursos de discursos” indefinidamente. Este problema volta na questão da notabilidade, preferida à relevância: a comunidade que não se orienta pela autoridade do argumento facilmente adota temas fúteis, perdendo-se em diatribes pouco aproveitáveis. Compilação que se preza indica autoria, não plágio. Para dar um exemplo corriqueiro: em ambientes positivistas, “revisão de bibliografia” tende a ser gesto descritivo, cumulativo, reprodutivo, agregando pedaços de autores disparatados; em outros ambientes, pode ser iniciativa compromissadamente reconstrutiva, dentro do desafio de ler autores para se tornar autor, ou “contraler” (Demo, 1994; 2008a).

A wikipedia descobriu logo que o concurso dos contribuintes será bem mais importante que regras metodológicas. De certa forma, instigou a produção incipiente, apostando em que os outros editores, entrando em cena, acabariam tornando esta produção incipiente em texto respeitável. Confia-se, em excesso, na participação como tal, supondo igualmente a boa fé de todos. A experiência malograda do Los Angeles Times (wikitorial sobre a guerra no Iraque) foi marcante no sentido de mostrar que não se pode confiar tanto assim na “mágica” da wikipedia. Não se critica este gesto de boa vontade, porque pior seria imaginar, previamente, que todos são malandros, mal-intencionados, até prova em contrário. É muito interessante a expectativa de um ambiente caótico, marcado pela liberdade de expressão, repleto de vozes diferenciadas, representando nisto também a biodiversidade. O problema é que se escondem as contradições deste tipo de dinâmica: de um lado, instiga-se que todos participem; de outro, desconfia-se que, onde todos participam, o resultado pode ser frívolo; para evitar isso usam-se dois discursos incompatíveis: participar à vontade, mas respeitando regras cada vez mais rígidas. Parece salutar a preocupação em manter os procedimentos como instrumentais, valorizando-se o conteúdo criativo. Mas a história da wikipedia indica que os procedimentos estão se tornando a própria finalidade maior, a ponto de sabotar um dos pontos de partida mais iluminados: os textos são sempre abertos. Buscam-se mentes indomáveis, desde que aceitem ser domadas no processo.

Entendo que as três linhas metodológicas, ainda que detenham noções práticas, são um cardápio indigesto, formulado em ambientes pouco iluminados metodologicamente e muito alinhados ao positivismo dominante. O que incomoda é que tudo isso se arma para manter o princípio de que “todos podem editar”, uma contradição vagabunda. De um lado, busca-se um estilo candente de produção de conhecimento, sempre aberto e atualizado; de outro, impõem-se regras que extirpam este fogo. O que a wikipedia é, em tom maior, é um campo de forças marcado por interpretações rivais e nisto criativas. A cooperação é dinamizada também pela rivalidade, porque, na natureza e na sociedade, são processos dialéticos na unidade de contrários. Incomoda na wikipedia que este ambiente facilmente desanda em vandalismo, agressão, destruição, esquecendo-se do compromisso com a obra básica: uma enciclopédia feita a mil mãos. Neste sentido, em vez de pregar alinhamentos metodológicos que apenas reforçam as rivalidades, seria mais recomendável estudar modos de convivência rival e, ainda assim, éticas. Isto aponta naturalmente para a força sem força da autoridade do argumento (Demo, 2005a).

Ainda não acabou, continua na parte 3
Originalmente visto em http://pedrodemo.sites.uol.com.br/textos/novasepist.html
Inté mais

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