quarta-feira, 14 de outubro de 2009

CONHECIMENTO REBELDE E ENQUADRADO - Pedro Demo (parte 3)

Leia também a parte 1 e a parte 2

V. FUTUROS DA AUTORIA

A wikipedia mostra, apesar de sua história tão curta e também estrondosa, que a autoria já não é propriedade restrita a algumas cabeças privilegiadas. Na prática, é acessível a todos, mesmo na maior simplicidade, porque qualquer pessoa simples também é “autora” de sua vida. Quanto mais a autoria se fecha em certas cabeças, mais se torna argumento de autoridade, maculando seu berço embalado pela liberdade de expressão. Nesta rota, um dos serviços mais importantes da wikipedia é a popularização do “espírito científico”, considerado uma das habilidades do século XXI. Saber lidar com método científico torna-se desafio geral, como parte da formação geral das pessoas. O argumento mais à vista é sempre o do mercado: para poder competir melhor. Mas, do ponto de vista da educação, o argumento crucial é formativo, divisando aí não só a questão do conhecimento, mas principalmente da cidadania. A esfera pública não pode ser ocupada apenas pelo especialista que sabe técnicas sofisticadas da argumentação, mas por todos (“todos podem editar”). Com razão, Fraser (1992) questionou a concepção de esfera pública da Habermas, excessivamente eurocêntrica e patriarcal, refletindo, em parte, a democracia elitista e restrita grega.

O’Neil (2009) apontou para a predominância ainda masculina nos ambientes virtuais, em especial nos mais requintados, ainda que isto esteja mudando rapidamente. Neste sentido, “forças arcaicas” continuam jogando pesado, sem falar nos intermináveis vícios das democracias atuais e por isso colocadas em cheque pela geração net (Tapscott, 2009. Winograd & Hais, 2008). Há um caminho enorme a ser andado até podermos equilibrar a “igualdade de oportunidades”. No entanto, parece claro que a wikipedia tem sido um farol nesta escuridão. Continua sendo um fato que muitas mulheres têm sua autoria atrelado ao homem, à sombra dele, ou gravitando em torno dele. O machismo na internet é público e notório, a começar pela pornografia. No mundo dos hackers a presença feminina ainda é peregrina, bem como na alta ciência. Mas isto pode mudar e deverá mudar (Plant, 1999). A idéia, então, de que “todos podem editar” serve de alento à participação indiscriminada, por mais que regras crescentes restrinjam as liberdades. Em última instância, as mulheres poderiam construir sua própria proposta, uma enciclopédia voltada para sua proposta de sociedade e desenvolvimento e dotada de ambientes mais libertários, ainda que não dicotômica.

Ao fundo, porém, o mais importante é a percepção cada vez mais incisiva de que a energia rebelde, disruptiva do conhecimento questionador precisa tornar-se patrimônio público, o que demandaria, por sua vez, outro formato de enciclopédia: não um repositório compilado do que existe, mas uma fornalha incandescida e talvez ensandecida, de produção de conhecimento de utilidade geral. Não se poderia perder esta tradição virtual, embora presa a expertises raras/carismáticas: conhecimento é tão importante para a sociedade que não poderia ser apropriado, também porque, não sendo nenhuma mente original, o que se produz provém do que outros produziram e vão reconstruir. Idéias são tipicamente bem comum: não devem ser vendidas, nem compradas. Nem em termos pessoais a mente é propriedade, porque somos, em algum sentido, apenas usuários dela. Esta utopia vale a pena. Não deveria jamais ser sufocada em nome do mercado.

É claro que, tornando-se o conhecimento científico de alcance popular, as epistemologias mudam, por vezes, dramaticamente. A tendência será a construção de textos mais “populares”, de compreensão mais acessível, mais curtos (também para caberem na tela), multimodais (modulando argumentos visuais, acústicos, plásticos, movimentados), sugerindo que conhecimento que só alguns entendem não tem maior significado para a sociedade. É preciso sempre ver o que se ganha e perde. Ganha-se em acesso popular, uma dimensão inestimável. Perde-se verticalização, também fundamental. Daí segue que não deveríamos ver aí rivalidades apenas, mas igualmente modos alternativos de cooperação. O conhecimento tradicional, também o positivista, guarda seu lugar, porque demonstrou efetividade imponente. Mas deveria permitir ou promover alternativas de conhecimento, tanto como complemento, quanto como questionamento. É de capital relevância o surgimento de conhecimentos rivais, não só porque, na verdade, sempre existiram, mas principalmente porque o espaço do conhecimento não pode ser ocupado por grupos seletos e que, ao final, são gangues (Santos, 2004).

Pode-se, então, apreciar na wikipedia também seus efeitos pedagógicos em termos de autoria. Quando editores simplórios se metem a editar, pode ocorrer um desastre, naturalmente, mas também um exercício de elaboração com marca formativa, à medida que tomam contato com o espírito científico e, ao lado do método, praticam um tipo de cidadania que sabe argumentar. Este efeito é impagável: aprender a preferir a autoridade do argumento; perceber sua força sem força; apreciar consensos tão bem feitos que podem sempre ser refeitos; fundamentar de tal modo que o texto permaneça discutível, formal e politicamente. Acresce a isto certo tom lúdico: a turma se diverte, enquanto trabalha, e, ao final, aprecia o resultado – uma enciclopédia sem maiores credenciais, mas interessante, útil, criativa e sempre atualizada. Um resultado primoroso é aprender a “pesquisar” e a “elaborar”, num ambiente que empurra as pessoas a preferirem a autoridade do argumento. Neste sentido, pode-se ver aí uma chance imperdível de aprender bem, num espaço interativo, crítico e criativo.

Em seu tom pós-moderno, a wikipedia consagra a noção preciosa de que uma idéia só pode ser “crítica”, se for plural. Idéia única, sendo “idéia fixa”, não passa de argumento de autoridade. É recado crucial para “críticos” sem autocrítica, quando a crítica se torna senha de um povo eleito que se imagina ter o direito de massacrar teorias e práticas rivais. Olhando, por exemplo, a Escola de Frankfurt, o que mais chama a atenção não é uma proposta alinhada e unitária de “teoria crítica”, mas sua imponente diversidade (Darder et alii, 2009. Giroux, 2009. Freitag, 1986). A escola era preenchida de mentes brilhantes e indomáveis que promoviam um “projeto comum” tecido de maneira plural. O lado mais fecundo da teoria crítica é sua verve maiêutica da autocrítica, uma virtude em geral ausente em nossas propostas críticas, porque, ao pretenderem superar donos da verdade, se instauram ainda mais como donos dela. Teoria única, absolutamente válida, é um petardo religioso, um dogma sujo, uma tramóia violenta, por mais que tenha como objetivo abrir as mentes. Ignora, porém, como a wikipedia atual ignora, que mentes não se abrem impondo alinhamentos, censurando a rebeldia alheia, monopolizando a palavra. O tecido infinito de vozes díspares, rivais e complementares, é o texto pós-moderno, no bom sentido, certamente muito mais difícil de “gerir”. É sempre mais fácil gerir tente dócil, mesmo que se diga “crítica”. A wikipedia possui esta graça: retorna à biodiversidade da natureza, plural, esparramada, dinâmica, ambígua. Nenhuma obra final sai daí, porque toda obra é interrupção e continuação, original e surrada. “Todos podem editar” poderia ser traduzido como “todos podem sempre aprender”, sem nunca chegar a algum ponto final (Grossi, 2004). Esta utopia aponta para um estilo de “qualidade humana” em processo infindável de formação aberta, crítica e autocrítica, rival e solidária (Demo, 2009c).

Tudo isso, entretanto, não encobre o tumulto desta esfera pública, porque nela não se brandem só argumentos, mas sacanagens de toda sorte. A wikipedia tem equacionado este desafio razoavelmente, mas encontra questões complicadas e cansativas, azedadas também por seus critérios metodológicos positivistas. O problema é que a wikipedia ainda não consegue apreciar uma “boa discussão”, preferindo textos “neutros”. De um lado, faz parte da tradição enciclopédica: não se dedica a discutir, mas a compilar. De outro, perde-se oportunidade ímpar de iluminar este tipo de esfera pública dedicada à boa argumentação e que sempre é um discurso “discutível”. Os mentores da wikipedia, por ranço positivista, não conseguem valorizar esta dimensão. Como é reprimida, a resposta é a contra-repressão, travestida de vandalismo e atitudes similares agressivas, destrutivas. Possivelmente seria o caso conceber outros formatos de enciclopédia, para abranger o que a wikipedia é: um fórum de discussão aberta sobre produções vigentes de conhecimento, não um sarcófago de textos em decomposição. Em geral, os temas mais caros, sensíveis, tocantes são “controversos”, porque somos, em pessoa, uma controvérsia ambulante. O desafio seria armar ambientes onde a controvérsia pudesse ser relativamente bem comportada e construtiva, podendo-se regular a si mesma em seus riscos de agressão e dissolução. Não há solução para tais riscos, mas poderiam ser “geridos” num sentido democrático aproximado. No fundo, a wikipedia caminha para um texto “estabilizado”, porque considera texto adequado aquele que já não é discutido. Na prática, o ideal seria o contrário: texto pertinente é o que suscita discussão. A beleza maior de um texto está em sua abertura promovida pela autoridade do argumento.

A wikipedia teme que este tipo de discussão aberta levaria a lugar nenhum – discussão interminável. Pode ocorrer – discutir por discutir; criticar tudo sem colocar nada no lugar. Seria de se perguntar, entretanto, se textos estáveis levam a algum lugar melhor. Levariam ao mesmo lugar da enciclopédia tradicional, um mausoléu rebuscado de textos. Não é este o destino da wikipedia, porque é uma sarsa ardente. Neste sentido, vejo com preocupação o avanço da rigidez de regras que contradizem, cada dia mais, às premissas iniciais da liberdade irrestrita de expressão. Houve um tempo em que se sugeria ignorar as regas, em nome da criatividade. Hoje é todo o contrário: só há criatividade tolerável se obedecerem às regras. Uma contradição sarcástica. Aceitar que a ciência é um texto discutível implica mudança radical de epistemologia, porque despe os cientistas de sua autoridade de experto ou de esperto. Entretanto, não é o caso agredir o especialista. Ele é figura central da produção científica. Cabe, porém, reconhecer que não preenche o espaço científico sozinho. Há outros conhecimentos rivais, também relevantes, ainda que não concorram em importância com o científico na cultura eurocêntrica.

Tudo isso desvela, quase como um tapa na cara, a politicidade do conhecimento. Primeiro, pode-se aludir ao sarcasmo contido na própria wikipedia: prega procedimentos neutros em meio ao maior tumulto das guerras de edições. Neste sentido, abriga um faz-de-conta medieval, presente em todas as esferas positivistas: usa a ideologia da neutralidade para impor o silêncio a quem discorda. Segundo, a disputa por verdades, sempre repletas de inverdades, deveria ser substituída pela disputa por argumento, inspirada na autoridade do argumento. Isto não pacifica a comunidade, porque beligerância lhe está na alma também. Mas tempera com alguma ética, para que não se matem todos, não restando ninguém para o enterro. Terceiro, apesar de todas as promessas libertárias, a wikipedia também está pendurada em carismas fortes, cuja interferência é, em geral, engolida sem pestanejar, num gesto terrivelmente pouco democrático. Submissão a carismas é comum entre libertários...

Talvez não seja para se surpreender. A busca de coerência dos textos, em sentido formal, não pode obscurecer que somos criaturas contraditórias. Nossa própria mente, como artefato fisiológico, é uma composição de camadas em parte adaptadas, em parte dissonantes, cujas energias nem sempre são sinérgicas (Lewis et alii, 2000). Pregar a democracia mantendo um sentido forte de liderança é coisa comum em nossa história. Alardear liberdade de expressão e alinhar-se a líderes carismáticos, igualmente. A wikipedia tem este defeito e esta virtude. É defeito, porque promete o que não faz. É virtude, porque reflete a algazarra humana, na qual ter voz quase sempre implica suprimir a voz do outro.

Conclui na parte 4
Fonte:http://pedrodemo.sites.uol.com.br/textos/novasepist.html

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